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Niri, Atitudes que mudaram duas vidas

Niri, Atitudes que mudaram duas vidas

Em setembro de 2015 percorri pela primeira vez em cerca de 12 horas os 163 kms da ferrovia Fianarantsoa-Côte Est (FCE), uma ferrovia construída no sudeste de Madagáscar, que conecta a cidade de Fianarantsoa, no planalto, à cidade portuária de Manakara construída a mando dos franceses, colonizadores na altura entre 1926 e 1936, usando o programa de trabalhos forçados SMOTIG.

Esta linha atravessa alguns dos habitats mais ameaçados do mundo. A manutenção do funcionamento desta linha é um dos garantes para a manutenção possível dos núcleos de floresta tropical que existem na zona sudeste da ilha, garantindo com a linha a chegada de produtos para alimentar as cerca de 16 aldeias que são ponto de passagem deste comboio que transporta pessoas e mercadorias.

A viagem nesta linha faz-se com paragens entre cada aldeia que podem durar de meia a duas horas, consoante as mercadorias para descarregar e carregar e também pelas avarias que o comboio tem regularmente.

Falar de Madagáscar é falar de um dos países mais pobres do mundo, mas também de um dos países com melhores pessoas no que respeita a simpatia e afabilidade.

Mas a história desta fotografia transporta-me para o dia em que conheci, a Niri, a criança mais velha que segura às costas o seu irmão. Numa das aldeias, cruzei-me com esta pequena rapariga, entre muitas crianças que iam aparecendo nas estações, a cada paragem. A realidade é que 2 vezes por semana, a cada passagem do comboio, as crianças faltam à escola ou aos trabalhos familiares, para ver quem passa, ou para fazer negócio vendendo um pouco daquilo que a família produz (frutas tropicais como bananas, mangas, ananás, especiarias, café, frango frito, chamuças, e tantas outras coisas).

A realidade local destas aldeias, de acessos difíceis para além do comboio, leva a que muita gente faça da linha a via mais fácil para ir de uma aldeia a outra a pé percorrendo as distâncias médias de 12 km entre paragens. Aqui a riqueza não abunda, pelo contrário, seria normal se trouxermos um pacote de bolachas para fora da carruagem, este ser disputado, estraçalhado, por um grupo de crianças que compete por uma simples embalagem de biscoitos.

Nesse dia em que conheci a Niri, saí da carruagem naquela paragem, eu estava a comer uns moufbal, imaginem uns biscoitos tipo sonho mas com massa mais consistente, e ela apareceu carregando às costas o seu irmão mais novo. Habitualmente meto conversa com muita gente que me vai aparecendo e perguntei-lhe o nome.

Tendo descoberto nesse dia esses maravilhosos “biscoitos” tinha uns poucos comigo, e à medida que ia comendo ia dividindo pequenos pedaços, partilhando com ela e com o irmão. Ela a cada bocadinho recebido ia guardando. O chefe da estação uns minutos depois faz soar o apito que avisa para a partida do comboio. Tinham-me sobrado uns dois biscoitos e pû-los nos bolsos dela. Ao entrar na carruagem olhei para trás e ela estava a dividir os biscoitos com as outras crianças que andavam por ali. Ao ver aquilo fiquei com o sentimento que aquela atitude era diferente de tudo o que seria normal no cenário habitual que tinha vivido naquele país até aquele momento.

Em 2016 voltei de novo a fazer aquela viagem de comboio e voltei a encontrar a Niri, e pelo segundo ano ela voltou a ter a mesma atitude de partilha. Fiquei a pensar que já que não consigo mudar o mundo, que se pudesse ajudar aquela criança a ter um futuro diferente do que esperar por um comboio que passa 2 vezes por semana iria ficar feliz.

2017, volto ao comboio na expectativa de conseguir falar com os pais dela para poder tentar arranjar informação que me pudesse sustentar um plano de apoio à educação da Niri. Mas não aconteceu.

2018, foi o ano, volto ao comboio, e mal chego à paragem dirijo-me à primeira criança que reconheço, o Lando, perguntei pela Niri, e ele responde que estaria em casa. Como não poderia afastar-me do comboio perguntei se ele podia ir chama-la a casa, mas não podia. Foi falar com uma vendedora de bananas, que depois de lhe dizer que lhe daria a gratificação de 10000 ariary, pousa o cesto de bananas e sai a correr. 5 minutos depois tinha a Niri e a sua mãe na estação.

Fui chamar o revisor do comboio para ser o meu intérprete e expliquei o porquê de querer começar a apoiar uma educação melhor da criança. Fiquei com alguns dados, com o número de telefone do pai. E segui viagem, já com esperança de que algo bom podia acontecer na vida daquela criança e também naquela família de agricultores malgaxes. Nesse dia, por excesso de alegria, descontração e confiança, pouco tempo depois daquele encontro, podia ter morrido ao ter caído do comboio em movimento, tive muita sorte de ter comigo um grupo de amigos viajantes que cuidou de mim, umas lesões, hematomas, galos na cabeça e arranhões à parte saí vivo deste episódio.

No dia seguinte falei com um amigo local e perguntei se por tal valor conseguiria dar apoio à família para que pudesse pagar o acesso a uma boa escola, sonhei que se ela quisesse aprender numa boa escola e aprender pelo menos uma língua estrangeira como o francês, ela poderia ter uma vida melhor ligada ao turismo, sendo esta uma das atividades mais promissoras naquele país. E com uma lingua estrangeira aprendida a nossa comunicação iria melhorar também.Tudo isto se ela quisesse ou quiser. A imposição nunca é boa estratégia, por isso ela tomará o destino que entender, mas pelo menos com algum acompanhamento.

O meu amigo disse que sim seria possível, ligámos ao pai dela que aceitou o apoio à família para que a criança pudesse ir para uma escola melhor. E foi aí que tudo começou a mudar. O pai teve de ir à cidade grande abrir uma conta no banco para lhe poder transferir o dinheiro, e uns meses mais tarde a Niri estaria a entrar numa nova escola. O sucesso não foi o melhor, pois a escola ainda na sua aldeia não tinha capacidade de resposta e de acompanhar quem tinha umas bases muito fracas. Depois desta fase arranjou-se uma professora privada que a preparou para o acesso a um colégio na cidade grande onde o comboio começa a sua viagem. Hoje encontra-se encaminhada e com os estudos mais orientados… o futuro agora pertence-lhe, cabendo-lhe a ela aproveitar e potenciar toda esta mudança no seu caminho. Daqui deste lado já somos uns poucos a torcer por ela. Resta-nos ir acompanhando, orientando e guiando para que num país cheio de adversidades, a vida lhe possa sorrir.

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